terça-feira, 26 de maio de 2009

Cobertura Cinza

Helena acordou naquela manhã cinza e chuvosa às dez da manhã. Abriu a janela e só via a chuva cair. Não havia nada mais do lado de fora além da chuva. Sem apetite, acendeu um cigarro, ainda sentindo o gosto do vinho da noite anterior nos lábios. Ela não conseguiu fazer nada. Tanto peso nas costas e tantas coisas chatas para ler e assinar. Não conseguia pensar em nada. Só tinha em mente aquela chuva que não parava. Abriu a janela novamente e só via os prédios sem vida. Foi aí que tentando ver algo mais, viu dois pássaros conversando em cima da antena de um dos prédios. Conversavam tanto. Batiam as asas para que um entendesse o outro. Ela não conseguia pensar em nada além disso. Estava sendo tão irresponsável que gostava daquela sensação de não conseguir pensar em nada. Não queria pensar em nada. Queria ficar olhando o céu cinza e ficou. Ficou ali por minutos e mais minutos. Um cigarro atrás do outro. As coisas que não podiam chegar dentro dela chegaram. Os pássaros tinham trazido? Tudo começou como um fluxo que se tornou mais incansável dentro de Helena. Um pensamento atrás do outro. Um sentimento atrás do outro.
Um dos pássaros gritou e ela também queria gritar. Estava sozinha naquele apartamento e dali não queria sair. Queria que o dia ficasse cada vez mais cinza. Queria sentir frio, mas naquela cidade não faz frio. Nunca fez. Havia os prédios, mas não havia frio. Ela ainda queria gritar com aqueles pássaros. Queria segui-los, mas não podia. Queria estar ali porque, de certa forma, aqueles apartamentos a faziam lembrar de tanta coisa que já não cabia dentro dela. Queria a presença sutil do que já tinha visto e vivido. Faltava o frio, faltava o frio. Os minutos passavam e a faziam se sentir culpada. O dia já tinha sido cortado pela metade e ela só tinha mais uma hora e meia para olhar para o céu cinza. Outro cigarro e ainda faltava o frio. E lá vem a Edith Piaf com aquela história toda de Non, Je Ne Regrette Rien para deixá- la mais confusa. Mais um cigarro e ainda tem vinho aberto. Ainda faltava o frio!! Cadê ele for God's sake? Ela ainda tinha uma hora! Era tão pouco diante daquele dia tão lindo! Tanta coisa que tinha ali! Os prédios, a cobertura cinza do céu, os pássaros, a Edith, o resto de vinho e a briga constante com a ausência do frio! Para que e porque aquela hora tinha que acabar? Para que o barulho dos carros começasse, para que as vozes começassem a perturbar, para que as perguntas que ela já estava cansada de responder se fizessem presentes novamente . Ela só tinha uma hora e agora lá vem a Cat Power com o lance de How can I tell you. Os pássaros ainda lá, mais vinho, o céu sem sorrisos, a chuva já ausente. Nada de almoço só vinho e queijo branco. Os minutos pareciam correr e ela queria era mesmo abraçar o céu, conversar com os pássaros ou seria abraçar os pássaros e conversar com o céu? Não importava, o que importou foi que inevitavelmente os minutos delas acabaram. Saiu da janela, deu o último trago, olhou os pássaros que quase dormiam. Trouxe o céu para dentro de si, mais uma mordidinha no queijo branco, um gole de vinho, um sorrisinho de canto de boca. Foi tomar banho. Já era 1 da tarde e as perguntas viriam assim que ela batesse o ponto. E ela com aquela máscara adaptável, com a maquiagem quase pronta e já ensaiando os sorrisos necessários ainda sentia a ausência do frio.

E. Alvarez