segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Parecemos não saber

“O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. Estar alerta em todos os momentos. A luta: o que você é com os outros e o que você realmente é. Um sentimento de vertigem e a constante fome de finalmente ser exposta, ser vista por dentro, cortada, até mesmo eliminada. Cada tom de voz, uma mentira. Cada gesto, falso. Cada sorriso, uma careta." (Trecho de Persona - Ingmar Bergman)


Algo sem eixo me torce por dentro. Não sei nomear, agora só sei sambar, sentir e musicalizar a sensação de ócio dócil que você me traz.
O vinho seco que despejas nos meus lábios os deixa quase dormentes de prazer. É aquela coisa da tensão amorosa que a gente parece ver só nos filmes. A campainha toca no fim da tarde. Quando você chega eu desligo a TV pois, já não quero mais um filme noir. Você me traz cor. As paredes da minha sala inevitavelmente sentem o teu azul que me transforma num blues feliz e levemente destoado. Olho-te quase sem piscar e em silêncio. Você acende seu cigarro e me pergunta se eu gosto do Ingmar Bergman e de imediato penso que o que eu quero mesmo é te entregar os meus morangos silvestres guardados na geladeira há dias. Assistimos à Persona e nosso mundo se (des) constrói em minutos. Juntos e ainda bobos lembramos e repetimos quase gritando, quase como amáveis idiotas, o trecho: “O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser.” Temos medo mas gargalhamos. Não sabemos o que realmente parecemos. A verdade é que dançando assim você me deixa sem jeito.
Somos assim quando estamos juntos e nada mais importa. É quase sete horas da noite e já estamos quase embriagados de nós mesmos. As palavras são desnecessárias. Comemos chocolate amargo entre os espamos e tomamos café quente depois de sexo latente. O nosso amor é insanamente racional e nosso sexo quase casual. Nosso suor se perde naqueles lençóis quase virginais. Em meio da nossa respiração desenfreada você me acalenta, e ao som do ruído gostoso da minha vitrola velha ouvimos nosso Chico. Logo você sorri me dizendo “lá vem esse cara de novo com essa história de Morena dos olhos d’água para quebrar mais ainda meu peito”. Eu não falo nada, apenas faço de conta que acho isso tudo muito bobo. Faço cara de descaso e deboche porque tenho medo que você venha novamente ou que não venha mais. Na verdade fico literalmente fraca dentro da nossa fortaleza de existência incoerente e quase conseqüente. Você quase desanima e vai mexer nos meus livros. Eu em silêncio permaneço no quarto que ainda nos exala. Você volta. Levanto. Preparo para você aquele ravioli de camarão quase apimentado. Você volta e me pergunta o que somos. Eu troco o silêncio por um fraco sussurro e digo que não somos nada de fato. Você repete o que eu digo três vezes para se convencer que precisa ir embora. Eu quase sorrio ironicamente. Sua ida já anuncia o choro cor de ferrugem. Você não quer ir. Eu não quero que você vá. Chico já não canta. O disco arranha. O inútil sonho de ser do Bergman acaba. Começamos a sentir o que realmente é. Você pede desculpas. Eu peço desculpas. As palavras faltam. O vinho acaba. O ravioli esfria. O chocolate derretido parece congelar. Você apaga o cigarro. Olho-te. Já é quase meia noite. Coloco Kate Nash para tocar. Olho a quase imperceptível fumaça que sai do seu cigarro apagado. Já não falamos há horas. Silêncio quase irritante. Você bate a porta. Seu cheiro fica.

E. Alvarez