"II y a toujours quelque chose d’abient qui me tourmente."-Camille Claudel
O que eu sei e ela me contou foi que aconteceu num resto de sábado à noite. Ela não sabia o que uma simples andança nas ruas de Paris poderia lhe proporcionar. Ela já estava cansada. Saíra de casa no fim de tarde para ir ao Café de La Paix e ler um dos poucos livros levados com ela do Brasil. Nessa tarde terminara de ler o Lobo da Estepe. – E quem é o mesmo depois de ler Herman Hesse? – Penso
Depois daquele fim de tarde fria e de um Machiato, decidiu andar pelas ruas de Paris.Se sentia feliz em fazer isso porque isso já era o suficiente para sentir tal cidade. Depois de algumas horas e já com pouco dinheiro para os drinks da noite seguiu para o Quartier Latin, certamente encontraria um bistrô baratinho por lá. Na margem esquerda do Rio Sena, era uma das áreas mais interessantes e baratas de Paris. Tudo que uma estudante brasileira precisa em Paris. Paris c'est très cher, mes amis.
Helena era brasileira e estava em Paris há pouco menos de um ano. Fora fazer um mestrado em literatura comparada. Seu objeto de estudo era a adaptação fílmica de Madame Bovary. Apesar de não gostar muito do Realismo, como escola literária, adorava a personagem da tal madame. Para falar a verdade, conhecendo Helena como conheço creio que ela gostava muito mais de assistir aos filmes e senti-los do que ter que escrever academicamente sobre eles. Andar pelas ruas de Paris fazia com que ela esquecesse um pouco daqueles blá, blá, blás das fundamentações teóricas da literatura comparada. Para ela a vida estava muito além disso tudo.
Chegou ao Quartier Latin, encontrou uns amigos espanhóis . Tomaram umas doses de vodka. As horas passaram e ela começou a sentir sua comum estranheza. Helena e suas típicas mudanças de humor. As conversas já estavam ficando entediantes. Despediu-se de todos e decidiu seguir sozinha. Era uma mistura de vontades e sentires. A eterna briga interna. Não queria ficar sozinha, mas também não se sentia bem rodeada de gente. Como dizia Camille Claudel, “Existe sempre alguma coisa ausente.” Helena me disse um dia desses que andar sozinha em Paris a fazia pensar nas coisas que a solidão européia causava nela. As tais dores e sorrires. Dizia que sentir solidão dava vontade de ler, de escrever, de sair por aí observando as árvores secas.
PARTE II – A Canção que Chegou
"A gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro." -Caio Fernando Abreu
Seguiu pela rua Du Bac e logo chegou na Champs Elysees. A rua estava silenciosa. Já era três da manhã e poucas pessoas eram vistas nas ruas. Lembrou que o Théâtre des Champs Elysées era ali pertinho na avenida Montaigne. Parou em frente ao teatro e logo viu o vigia. Pediu para que ele a deixasse subir na parte alta do prédio e ele depois da insistência dela autorizou. Ela já havia escutado que aquele lugar tinha uma vista linda.
Sentou ali sozinha e logo viu a imensa Torre Eiffel que de vez em quando piscava. Disse-me que naquele momento sentiu saudade do Brasil. Foi uma súbita saudade, pois ela não tinha pudores para dizer com todas as letras que viveria na Europa pelo resto de sua vida. Acendeu seu Marlboro mentolado e desejou ouvir Cartola naquele momento. Se não me engano era uma que dizia assim: “Na manhã que nascia encontrei, o que na noite tardia desejei e vou feliz a cantar por aí assim...” Teve vontade de escrever. Pegou seu caderninho e só tinha uma palavra em mente: silêncio e assim escreveu em letras grandes: S I L Ê N C I O. Estática, muda, parecia que tinha o mundo dentro de si. Ali, lembrava das suas andanças no Brasil e de tantos encontros e desencontros que a vida havia dado a ela. Ela começou a pensar que amava todos aqueles processos pelos quais havia passado. Não importava se tinham sido tristes ou felizes, mas sim que ela tinha vivido cada um deles da maneira mais intensa e singela. Essa minha amiga Helena era uma mistura de Sylvia Plath com um pouco da arrogância da própria Madame Bovary, cheia de questionamentos, vivências e algumas frustrações.
Ela ali, diante da Paris silenciosa, com quase o dia amanhecendo. Ela, seu cigarro e meia garrafa de Bordeaux. Em meio de tal silêncio ouviu uns passos. Era um rapaz de mais ou menos vinte cinco anos com um livro e um violão na mão. Ele sentou a dez metros de distância dela. Não disse nada. Apenas a olhou insistentemente. Ela a princípio se sentiu incomodada mas logo sorriu e começou uma conversa.
— Qu'est-ce que lire?
— Eugénie Grandet, Balzac. C'est française? —Ela com a aquela cara de no mínimo espanhola! Ri quando ela me contou.
—Non, je suis brésilienne.
(silêncio)
— Moi aussi! — Disse ele com um sorrisinho cínico e confuso no rosto. Ele também era brasileiro e juro que nessa parte da história foi difícil acreditar! — Brasileirinho da gema!
Sinceramente? Quão cheia de possibilidades é Paris? Depois do susto da coincidência do encontro, os dois conversaram sobre suas vidas e o que estavam fazendo em Paris. O tal moço de mais ou menos vinte cinco anos e que se chamava Paulo era músico e estava lá também fazendo mestrado. Estudava a ópera do compositor francês Nicolas Méhul e sua música durante a revolução francesa. Conversaram durante horas e é claro que falaram muitas vezes do que haviam deixado no Brasil. Helena perguntou se ele conhecia Geraldo Azevedo e pediu para que ele tocasse Dia Branco. Eles cantaram juntos essa e algumas músicas da Bossa Nova. A sintonia era tão boa que pareciam se conhecer há muito tempo. Foi um resto de noite e amanhecer muito incomum e belo. Viram o dia amanhecer em Paris. Isso até lembra aquele filme do Richard Linklater, Antes do Amanhecer. A diferença é que não precisaram pegar um trem pra se encontrarem. A vida os encontrou sem muito esforço. E como isso é bom e raro.
As horas passaram e eles nem se deram conta. O Bordeaux acabou e os cigarros também. A conversa regada à vinho e tendo a Torre Eiffel como pano de fundo fez com que Helena se sentisse muito leve. Riram muito e chegou uma hora que dentre os mais sinceros sorrisos, o silêncio tomou conta dos dois. Ele apenas com uma mistura de desejo e delicadeza, pegou no rosto dela, a olhou insistentemente e depois de um encontro de olhares que pareceu um segundo eterno e o “sim” dela marcado por um sorriso singelo, ele a beijou. – Isso não é mais uma história de filme? – Penso. Não, não era, era tudo bem real naquele amanhecer de domingo em Paris.
Às vezes a gente pensa que as possibilidades de acontecimentos são tão nulas que nada acaba acontecendo de fato.O medo dos encontros pelos quais passamos nos torna fracos. Mas Helena não ligava para isso. Ela queria mesmo era e sentir os pingos de vida exalando pelos poros. Helena sentiu uma feliz perturbação depois daquele beijo. Algo a dizia que aquilo era apenas um começo, apenas uma das manhãs felizes que viriam. Ela, mulher de trinta anos, sentia naquele momento as borboletas azuis invadirem seu estômago. Ele, com seu silêncio curioso, sorria discretamente. Aquilo era o que Helena costumava a chamar de vida. Eram aqueles momentos, que pareciam parar o tempo e durar uma eternidade, que construíam o real sentido do verbo. Era isso que ela buscava em suas eternas andanças, internas e externas. Eram tais sensações que a faziam feliz: um pôr-do-sol, um café em fim de tarde, uma música da Edith Piaf, o silêncio de uma rua estreita, um simples sorriso, um filme num fim de tarde cinza de domingo, um beija-flor solitário em busca de néctar, o gosto de um biscoito de nata desmanchando em sua boca. Eram esses tipos de coisa que faziam a minha amiga Helena feliz. Assim como a Lispector falou em Perto do coração selvagem: “O que eu desejo ainda não tem nome”, falava Helena.
O dia amanheceu. Já podiam ouvir os carros invadirem as rua. Seguiram para o Café de Flore, ele com seu violão e ela com seu sorriso interno de menina e isso tudo só me faz chegar a conclusão que essa é mais uma das histórias de encontros e possibilidades de amor que acontecem em Paris. Depois dessa história que Helena me contou eu realmente com meu francês capenga posso dizer que Paris est la ville de l'amour. Já Helena, moça calada e de sorriso tímido, não sabia que aquele beijo poderia ser cheio de tanto.
E. Alvarez