segunda-feira, 14 de março de 2016

Prosa


Não sei fazer poesia 
só escrevo em linhas brancas
tortas
só tenho palavras Antunes
que caem sempre
em território perigoso
todas under pressure 
sob confusão, 
tudo verso concreto
que tenta tradução.

E você,  que não pode me ler, 
not a stone age man,
amarrado a uma lógica, 
não pode me traduzir
não pode explicar o que quero saber. 

Não sei fazer verso even flow
butterflies aterrizam  
são afugentadas
não deixo que dancem em mim.

Não entendo de métrica 
escrevo qualquer coisa
desenho você,
teus caminhos labirintos
escrevo apenas minha lista de desejos
and I wish I wish I wish...
to be the radio song
the one that you turned up.

Não há mais tempo pra poesia 
this is our last dance
seu blues makes me blue.

Sinto
e sentir é tão desesperador 
como esse  último cigarro
como esse último gole de vinho
como essa noite que não acaba
como esse silêncio
como um verso mudo
como Tom Waits cantando  
I hope that  I don't fall in love with you.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Helena, ascendência em câncer



(Parque Trianon, SP. - Adaptação de uma foto de Emmanuel C.A. Mourad)


...............Seca. Assim parecia ser Helena. Não se sabia ao certo. Acordava todo dia às 6hrs da manhã e seguia seus rituais. Ligava o som da sala. Sempre a mesma música. Sempre a mesma ópera. Ouvindo Turandot, Helena engolia uma fatia de pão integral com aquele queijo sem gosto e um copo de suco de laranja. Café não tomava. Dizia que fazia mal à saúde.
...............Helena era meio neurótica. Precisava de uma ordem para que a vida seguisse. Livros arrumados. Filmes distribuídos em ordem alfabética. Talheres brilhantes, guardados de acordo com o tamanho. Era virginiana. Gostava de bolo de fubá.
...............Tinha 38 anos. Solteira, sem filho. Era silenciosa. Não gostava muito de ficar perto das pessoas. Não tinha paciência suficiente. Amigos? O único havia ido morar em Barcelona. Casara no verão de 2009 com uma gringa. Helena morava sozinha. Tinha um gato.
...............Helena era arquiteta. Tinha seu escritório há 15 anos no centro de São Paulo, perto da Praça da República. Chegava lá todos os dias às 9hrs e saía às 16hrs. Gostava de usar o metrô. Conhecia a linha 3 como ninguém. Gostava de dar informações sobre os caminhos, sobre as linhas coloridas que cruzavam a cidade de São Paulo. Gostava de observar as pessoas. Sempre ouvia Johnny Cash no seu IPod.
...............Ninguém nunca ouviu falar muito de Helena. Ela não falava de si. Era trancada em seu mundo. Gostava de ficar em casa no fim de semana. Ninguém sabia, mas ela adorava uísque e conhaque; eram seus companheiros. Helena tinha dia até para sair da ordem. Era assim todo sábado. Cozinhava, bebia, cantava as músicas do Jonny Cash. Sabia todas de cor. ♫ I don't intend to do nothin' for nobody, no time… ♫ Depois, caia no sono e acordava no domingo quase às 3hrs da tarde. Ficava na cama até o começo da noite. Não gostava de domingos. Tirava o telefone do gancho.
...............A verdade é que Helena estava entediada naquela primavera de 2010. Vivia entre uma linha tênue de ordem e de caos. Era virginiana, mas seu ascendente em câncer começou a se manifestar naquele mês de outubro. A desordem e a vontade de largar-se por aí gritavam. A Lua havia entrado em aquário.
...............Quinta-feira à noite, quando Helena ia pra sua aula yoga, algo a fez sair da rotina. Decidiu não ir à aula, foi ao cinema. Nem gostava muito de filmes. Ficava entediada quase sempre. Foi num cinema na Rua da Consolação. Era uma semana dedicada aos filmes suecos. Tomou café.
...............Cinema já escuro. Sentou em uma das duas mesinhas do bar que havia no cinema. Percebeu logo que havia alguém na mesa ao lado. Não dava pra ver direito. O filme começou. Helena prestava atenção nos diálogos. Tentava não se entediar. Às vezes olhava de lado. Era curiosa.
...............O filme terminou e Helena seguiu meio inquieta para a Rua Haddock Lobo. Sentou no primeiro bar que viu. Não percebeu que o cara que estava ao seu lado no cinema havia a seguido. Desprovido de timidez, logo sentou na mesa que ela estava. Surpresa, tímida e afoita do lado de dentro, Helena tentou quebrar o gelo com um sorriso e com um “- sim, pode sentar”. Nada daquilo parecia real. Nada estava na ordem. Culpa da Lua.
...............A noite seguiu. Helena e o homem do cinema atravessaram a noite conversando. Tão quanto ela, ele só queria companhia pra um copo de uísque, palavras. Nada mais, nada menos. Helena contou histórias do tempo que fazia faculdade, e por mais desinteressantes que fossem, o homem do cinema não queria parar de ouvir.
...............Não ficaram bêbados, mas altos o suficiente para falarem um pouco um do outro. Às vezes sorriam, às vezes ficavam calados, às vezes Helena pedia ao garçom pra colocar Jonny Cash, às vezes ela lembrava do seu gato. Ele era mais calado. Talvez libriano, talvez de capricórnio, ou pra completar a confusão, poderia ser regido pela Lua.
...............A verdade é que nada disso importava. Eles estavam ali pelas palavras, pelo uísque. Ela soube pouco dele. Eram quatro da manhã. Noite findou, o uísque acabou, palavras secaram. Helena tinha que ir. Tinha que acordar às 6hrs, pegar a linha vermelha, ouvir Jonny Cash, alimentar o gato.
...............Mantiveram contato, afinal o santo de um havia batido com o do outro. Conversavam fim de noite pela internet, pouco usavam o telefone. Às vezes passavam semanas sem se falar. Ele era estranho, sumia. Já ela, tinha a Lua em escorpião. Ficaram alguns meses sem se ver, mas um dia resolveram se encontrar. Já era verão. A Lua estava convexa, minguante, disseminada em virgem.
...............Tinha que ser rápido. Helena não gostava de ficar na rua até tarde depois do trabalho. Ele tinha que voltar pra casa. Tinha esposa, tinha dois filhos. Marcaram no Parque Trianon. Melhor lugar para se fugir do calor do mês de janeiro.
...............Helena sempre ficava nervosa quando pensava na possibilidade de vê-lo. “Tremia como a antena de um inseto irritadiço” por dentro, mas era a mesma pessoa de aparência seca por fora. Talvez ele nem notasse, mas se sim, do que isso adiantaria?
...............Encontraram-se às 16:30hrs no parque e mais uma vez conversaram. As conversas banais de sempre. Riam, sentiam prazer em estarem juntos. Às vezes o silêncio vinha. Ficavam sem graça. Helena queria dizer coisas que sentia. Ter lua em escorpião e ascendência em câncer complicava a vida dela. Ter o sol em virgem parecia não adiantar quando estava ao lado dele. E qual era o sol dele? Ela nunca soube. O que importava é que ele tinha um muro ao redor de si. Era isso que Helena sabia.
...............Mais uma tarde passou, a noite chegou, mais um encontro, mais silêncios. Não se sabe de fato o que aconteceu naquele fim de tarde além das conversas. Helena nunca contou a ninguém. Talvez tivessem deitado no colo um do outro, talvez tivessem se beijado, talvez tivessem apenas conversado as bobagens que adoravam conversar. O que se sabe é que chegaram em casa na hora de sempre.
...............O fato é que é que nada disso importa. O que importa é que depois desse dia não se encontraram mais. Falam-se esporadicamente. Parecem acompanhar naturalmente as fases da Lua.
...............A vida de Helena segue. Acorda às 6hrs da manhã, pega a linha 3, ouve Jonny Cash, faz aula de Yoga as quintas-feiras, alimenta seu gato. O problema é que Helena tem ascendência em câncer.


E. Alvarez

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Carta à Maya

São Paulo, entre novembro e dezembro de um ano qualquer.

Ao som daquela nossa música do Chico...

Minha [só por hoje] Maya,

"Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse
telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo
conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo...” (Caio F.)


...............É verão e já não agüento mais ficar trancafiado neste apartamento. O calor de São Paulo nesta época é insuportável. Você sabe, fico enjoado demais no verão. Esse calor mexe com meus nervos! Pensei em sair, pegar um vento, ir atrás da Augusta ou da Madalena, mas nem elas me satisfariam nesta tarde. Adiei, adiei, mas te escrever tem sido uma urgência. A saudade é grande! Onde você está, Maya?? A vontade de te encontrar desespera. Já que isso não vai acontecer, escrevo. Ahhhh, Maya, esperei te encontrar, esperei te encontrar! Tentei até escrever para outras pessoas, mas não deu. Trocar o destinatário seria fácil, já o que sinto, não. Cartas podem ser amorosas, desesperadas, inconseqüentes, safadas ou tristes, mas devem ser primordialmente sinceras. Vejo carta como algo sagrado. Chego até ter ciúmes das palavras que escrevo. Sim, ainda sou daqueles que escrevem cartas. Hoje em dia, tudo é muito virtual, até o sexo, e pior, o amor. As pessoas transam com blogs, fotologs, mostram o casamento no orkut, se alimentam de facebook e dão uma rapidinha pelo twitter. Nossa, ainda não me acostumei com aquele bagulhinho de 140 caracteres. Eu escrevo demais. Maya, ainda está aí? Espera, a carta não é muito longa! Não esta, prometo!
...............Calma, Maya, só por hoje tenha paciência de me ler. Vou começar a dizer algo que preste agora. Preste atenção, mas não ligue para a bagunça das idéias! Sou um homem totalmente desorganizado, até com as palavras. Entenda... desde ontem que faço tudo que tenho que fazer com os retalhos desta carta dentro de mim. Sufocava!! Essa é a verdade. Precisava mesmo escrever! Dói, sabe? Sei que não vai receber esta carta, como nunca recebeu nenhuma nestes quase últimos três meses. Eu nunca mandei, mas eu prometo que esta é a última. É a última, Maya, é a última, é a última mesmo. Perdoe-me se repito isso, mas eu preciso dizer, mesmo que só aqui, mesmo que só agora. Amanhã, eu guardo a carta, vou no cinema, trabalho feito um louco, vou num boteco e esqueço tudo. Eu já decidi.
...............Eu sei que nada disso que escrevo pode fazer sentido, mas eu preciso inventar alguma coisa nesta tarde... até exagerar!!! Quando se escreve, tudo pode!! Os vizinhos já não me deixam em paz, o telefone não para de tocar, a criança do lado grita, não consigo fazer o balanço da empresa. Não me concentro!!! Pior, acabou a vodka. O caos foi posto!! Espere, vou colocar Chico. Pronto. Chico. Chico, sem vodka? Não importa, vai sem vodka mesmo. Vou me enganar com aquele refrigerante de limão já sem gás que está na geladeira. Sim! Ainda sobre Chico... é ele que me faz lembrar melhor da sua existência. Você pode me perguntar que música dele me lembra mais você. Nunca diria, não aqui, não nesse pedaço de papel. Boto Chico e quase sinto você perto de mim. Foi assim durante dias. É assim agora. Amanhã, procuro na rede qualquer discografia dessas bandinhas novas, boto para tocar o dia todo, faço o balanço da empresa e tudo volta ser como era. É que hoje eu quero assim. Só hoje. Hoje é Maya.
...............Não me chame de louco. Posso até ser, mas sei que ninguém te inventou como eu. Nunca duvide disso. Já te vi? Não tenho certeza. Vi? Se vi, lembro da primeira vez. Lembro, lembro, lembro!!!! Ou lembro mais da segunda? Não sei. Eu sou homem e homem não organiza lembranças. Melhor assim, nesse emaranhado todo. Até gosto mais. Acho que me lembro do seu rosto. Dos detalhes dele? Não, nunca os senti. Sim, lembro bem dos olhos e o do sorriso. Estes filhos da mãe ainda estão impregnados na minha mente. Eles me fizeram inventar você. Amanhã eu os esqueço de vez. Já anotei na agenda.
...............Maya, eu tenho dores no estômago. Eu sei, já já passa. Amanhã.
...............Olha, a única coisa que te peço é que me deixe falar tudo. Sim, já disse, esta é a última carta. As outras estão aqui. Pensei em rasgar todas ontem à noite, mas não tive coragem. Lá estão as coisas que a gente não viveu. Lá tem aquela viagem pra perto que a gente não fez. Preciso proteger minhas fantasias, Maya, mesmo que em rascunhos. Não, não me tire esse direito! Só amanhã. Sobre as cartas, não se preocupe, não as jogarei fora. Talvez um dia você ache todas por aqui. Talvez um dia eu as leia para você. Não, isso não vai acontecer. Isso, confesso, nunca inventei. Maya, fica aí só mais um pouquinho e talvez eu te diga tudo.
...............Eu sei, eu sei que esta carta está tão mal escrita como tudo por dentro de mim esta tarde. Ainda bem que é a última. Eu já não aguentava mais. Você não as lia e eu não suportava mais teu silêncio.
Eu queria te dizer tanta coisa, mas eu não sei como. Tudo que tenho é um estômago que dói, Chico, e a minha vontade de você. Acho que vou sair pra comprar vodka. Nem sei se já é noite.
...............Preciso acabar esta carta, mas preciso, antes de ir, e só hoje, falar dessa minha vontade de te ter... dessa minha vontade idiota de ficar, ao menos uma vez, mudo perto da tua orelha. Ah, como penso nisso, como penso na minha mão apertando tua cintura. Essa é a visão que mais invento. Cada noite invento um aperto diferente. Ah, Maya, Como vivo inventando o gosto da tua boca, de cada parte tua. Perdoe-me, é que tem uma música de Chico aqui que me deixa assim, dizendo essas coisas que não tem limite.
...............Você não sabe, à noite é a hora que mais te invento. Consigo ver teu corpo perto do meu. Fecho os olhos, sinto o cheiro dos suores se confundindo, vejo os movimentos em random das nossas pernas. Elas se entrelaçam, parecem dançar. A verdade é que penso nas coisas mais bonitas e nas mais sórdidas quando penso em você. Queria te levar lá no Horto Florestal. Já foi? Quando surto com a Paulista corro pra lá! Deitaria naquela grama macia com você fim de tarde. Faríamos silêncio. Depois de te levaria pra jantar. Não vou mentir, não sou romantiquinho o suficiente para só querer te levar pra jantar. Eu quero você antes e depois...quero pronta para o café da manhã. Meu Deus, isso soou meio Roberto Carlos, não foi? Releve.
...............Perdoe-me, Maya, não quero ser grosseiro, mas meu corpo também quer escrever sobre o seu. Só hoje, agora, amanhã não. Não vou repetir nesta, as coisas que escrevi nas outras cartas. É que eu inventava melhor teu corpo há dias atrás. Dava para sentir você me tocando. Ah, Tenho estado cansado de um corpo que não tive. Demoro a dormir, acordo cedo e vou trabalhar. Chego no trabalho, tomo aquele café HOR-RO-RO-SO, sorrio, leio o horóscopo [qual é a sua lua, Maya???] e até dou aquelas cantadas idiotas nas minhas colegas de trabalho. Fica tudo tão bem.
...............Essa carta está ficando cada vez pior. Preciso terminá-la urgentemente. Acho que disse tudo. É que não sei escrever direito. Perdoe-me, sou brega, até com as palavras. As outras coisas que escrevi estão nas outras cartas, já disse, não foi? Sabe que te escrevi um poema dia desses? Não ria! Fiquei envergonhado. Li só uma vez e depois guardei dentro do livro que mais gosto. De lá ele não sai. Sei. Nunca te entregarei. Ninguém pode ver, Maya, ninguém. É teu.
...............Vou sair agora, deu vontade de ir na Augusta. Dá tempo. Você sabe, tudo ainda dá tempo por aqui.
...............Diria mais, mas já é quase amanhã. E sobre amanhã, você já sabe.
...............Um beijo, o último, grande, tolo, inconseqüente,







...............Ahhhh, Maya, teu corpo é caminho para onde nenhuma estrada me leva.











E. Alvarez


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Entre os sambas, uma saudade*

Eu estava longe
e não sei
se foi Chico
ou Cartola
que me fez
sambar teu nome.

E. Alvarez

*Escrito a sete mil pés sobrevoando Salvador. Voo 3454

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Minha Poesia

É a primeira letra que canta
É a palavra coxa que quer dançar
É o verso contido
É o reverso que nasce
É o primeiro verso que ressoa
É o segundo que emudece
É a rima tímida
É o terceto que geme
É o quarteto inconsequente
É a estrofe excitada
É o silêncio que quer se desfazer em gozo
É coito interrompido
É o sexo que seca
É a saudade lírica que fica
É o emaranhado de versos
É nó singular que quer ser plural.

E. Alvarez

sábado, 28 de agosto de 2010

Branca Agonia

A folha em branco é a agonia da não escrita.
É amarração da linha que não quer se desdobrar em verso.
É reverso que não acontece.
É ausência da alegria do verso colorido.
É massacre que faz do tempo inimigo.
É grito mudo, vontade tímida.
É corpo vestido que quer se rasgar na nudez.
É a busca da rima fracassada.
É o sufoco humano que quer transbordar.
É medo do encontro com o que está atrás do espelho.
É o não sentir em paradoxos.
É o não encontro das antíteses.
É a agonia branca que não se desfaz.

E. Alvarez

sábado, 14 de agosto de 2010

Sonhos em [re] Versos Azuis


Cá entre nós: fui eu quem sonhou que você sonhou comigo? Ou teria sido o contrário? Sonhei que você sonhava comigo. Mais tarde, talvez eu até ficasse confuso, sem saber ao certo se fui eu mesmo quem sonhou que você sonhava comigo, ou ao contrário, foi quem sabe você quem sonhou que eu sonhava com você. Não sei o que seria mais provável. Você sabe, nessa história de sonhos — falo o óbvio —, nunca há muita lógica nem coerência. Além disso, ainda que um de nós dois ou os dois tivéssemos realmente sonhado que um sonhava com o outro, também é pouco provável que falássemos sobre isso. Ou não?” (Caio Fernando Abreu em “Por trás da vidraça”)

Às vezes acordo com a sensação de que sonhei que o teu corpo estava perto do meu. Acordo e vejo que nem eu estou no lugar. Nada está no lugar! Os copos, os pratos, os livros, meus filmes e muito menos as horas que vivo! Corro para o dia começar. [Re] invento-me para me concentrar nas notícias diárias do jornal ou para escrever mais uma petição ou lembrar onde está o carimbo que uso nas procurações. Acabo mesmo é esquecendo de me procurar no meio de tanta burocracia.
A verdade é que não quero abrir a janela do quarto para que a lembrança do teu corpo não saia rapidamente. É verdade que só quero escrever sobre a sua [não] lembrança.
Tomo café e lembro dos filmes que não assistimos. Permeio minhas falsas lembranças com as cenas de Laranja Mecânica que não vimos. Passaríamos horas falando dele, não?
É bom lembrar do que [não] aconteceu. Ou aconteceu e nem percebemos de fato? Foi sonho só meu regado a vinho? Excesso de cafeína? Excesso de Radiohead?
É bom não saber das noites que não seguimos Baco por medo de não sabermos acordar do nosso próprio sonho real. Era um blues ou um jazz que não ouvimos no fim de semana passado que não passou?
Não quero saber o quanto você parece comigo. Não quero saber do que já sei. Não quero me [des]concentrar dessas petições e procurações que tenho que fazer, pensando na gente e no cheiro que a gente [não] deixou um no outro. Já não sei o que aconteceu. Já [não] sei. Aconteceu?
Lembro que não te falei do meu ciúme silencioso quando você escuta a Cat Power. E aqui só me resta ouvir Noel Rosa. Lembro também dos nossos cafés, cigarros e reflexões matinais que não aconteceram naquela manhã de inverno chuvosa na cidade que nunca planejamos ir. [Não] lembro do livro de Kerouac que desfolhamos juntos. E o que seria de nós se soubéssemos que somos, tão quanto ele, loucos pra viver, loucos para falar, loucos para sermos salvos e desejosos de tudo ao mesmo tempo? É um perigo saber de tanta coisa assim. Fiquemos sem saber [?] O melhor é ser livre.
É noite, tenho medo de dormir. Sonhar com acasos ou ter medo de transformá-los em descasos.
Temos medos que gritam e só o inconsciente pode ouvir. Viramos escravos dele e não conseguimos ver os versos através das poucas horas que estamos juntos. Preferimos estar em silêncio. Sem saber o que falar. Sem saber o que sentir. [Não] queremos perceber. Perceber o que timidamente já percebemos? Ah, baby… “We're just two lost souls. Swimming in a fish bowl, Year after year, Running over the same old ground. What have we found? The same old fears...”.
Eu não sei o que está por trás da vidraça que nos amedronta. Não sei se sonhei com aquela estranha caixa de sentires que carregas.
Não sei se sonhei com aqueles versos brancos pintados de azul. Não sei se sonhei em “ser livre daquilo que nos prende”.
Vou dormir agora e [não] quero sonhar com a suave dor que você [não] deixou nos meus lábios nesta noite.
Eu quero [não] acordar deste [re] verso.


E. Alvarez