segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Estações

Não, não me lembro bem o que aconteceu naquela época. Lembro que você dormia e eu pegava no sono te olhando. Tudo que tenho dentro de mim é a lembrança do meu inverno de sentimentos. Não me entenda mal, o inverno é a minha melhor estação, onde me encontro melhor.
Sim, vi você ali e não sabia ao certo o que sua imagem me causava. Confuso, eu levantava no meio da noite, acendia um cigarro e ouvia Cartola. Voltava pra cama e sua imagem era tão suave que eu quase não conseguia cerrar os olhos.
O dia chegava e você estava ali. Eu queria acordar primeiro só pra poder ver teus olhos tristes ainda fechados. É verdade, agora recordo que seus olhos eram tristes. Você me contou uma vez em meio aos nossos vinhos quase matinais que seu avô paterno sempre dizia: “Cresce, cresce, mas sempre vai ter esse olhar triste.” E acredito que você era triste de alguma forma. Você e aquele seu olhar de outono caído que só era apagado quando um sorriso primavera invadia seu rosto. Era mais um momento que eu gostava de te olhar e às vezes eu acho que você não entendia, ou algumas vezes você fazia aquela cara de inverno indefinido sem entender o meu olhar.
Eu juro que eu me perdia nesse seu olhar. Eu tentava ler cada um deles, mas nem sempre era possível. Uns eram transparentes, outros cinzas, outros doces e outros mal-humorados. Depois de um tempo resolvi que não iria mais querer entendê-los. Senti-los era o bastante.
Agora faz frio aqui e por isso é fácil lembrar o meu último verão com você. Nós não íamos à praia. Passamos as férias vendo todos os filmes do Ingmar Bergman e você acabou elegendo Persona como o seu preferido. Já eu fiquei com O Sétimo Selo. Lembro-me que passávamos horas falando do silêncio de Bergman e depois tínhamos os nossos próprios silêncios. Pena que verões assim acabam.
Hoje estou aqui, penso nos seus olhos e como eles me olhavam. Pergunto-me quase desesperado como foi que eu deixei você ir e porque você foi. Não sei se o tempo nos engoliu. Não sei se fui covarde, não sei se não percebi suas estações e não sei se não me percebi nelas. É sempre assim a covardia humana. Vivemos fugindo dos amores, das dores e até das cores. As danças nos convidam e quase despercebidamente não ouvimos nem a música tocar.
Já não sei bem mais o que digo ou o que sinto. Estou sendo arrastado pelo tempo. Passei por várias estações, mas só tenho a lembrança daquelas que via você dormindo.

E. Alvarez

5 comentários:

VaneideDelmiro disse...

Depois de tudo, como permanecer são nesta ESTAÇÃO?
Gostei muito do seu texto.

Anônimo disse...

adoro suas referências

Anna Oliveira disse...

Quem entra aqui e não comenta (ou quase não entra) perde lugar na lista de blogs favoritos ao lado é? Kkkkkkkkkk!
Belo texto.
Bjs.

Anônimo disse...

adorei todos os jogos com os detalhes fazendo parecer um texto biografico, ja que sou um leitor contaminado pelo fato de te conhecer, mas adorei quando voce me enganou com uma boa sacada do eu-lirico masculino. O texto eh uma ficcao muito bem construida em torno do titulo "estacoes". Achei legal a forma como vc por oras inverteu o que o senso comum, por exemplo, pensa do inverno como algo negativo, mas que para seu personagem eh uma epoca de producao e alegria. Eh massa a grandeza de todas as estacoes do ano que seu personagem viu num simples momento dos olhos fechados da sua amada.

C Sturba

J. Kumamoto disse...

Meu inverno está só começando. É um inverno profissional, mas faz um frio danado. Não me conformo em ficar embaixo dos lençóis.
Ótimo texto.
=**