quinta-feira, 23 de abril de 2009

Quase Inerte

(Para ler ao som de Videotape do Radiohead)



(Photo by BonzaiBakurai)


…No matter what happens now
I won't be afraid
Because I know
Today has been the most perfect day I have ever seen...
( Radiohead in Videotape)


E ele estava ali, quase inerte, sentado à beira da calçada. Era domingo à noite e ele não sabia bem o que fazer. Era uma mistura de sentir e não sentir. Sentia-se frio e ao mesmo tempo parecia queimar por dentro. Não, não consegui chorar. Era orgulhoso até consigo mesmo. Seu rosto quase petrificado denunciava as linhas do tempo e peso que trazia nas costas. Olhava a rua e seu olhar era disforme assim como as horas de sua vida. A barba era manchada de cigarro e seus lábios secos.
E ele estava ali, quase inerte, sentado à beira da calçada. Lembrava de tanta coisa que seus quarenta e dois anos de idade pareciam sessenta. Lembranças vinham como num videotape de fita amassada. E ele pensava nas noitadas que havia vivido, quantas doses de Blue Label já havia tomado, quantos amores haviam sido dilacerados, quantas putas tinha tentado beijar em fim de sexo vazio, quantas sentenças havia dado vestido com a toga que lhe pesava na alma, quantas vezes havia desistido de fazer teatro, quantas noites de cama vazia após dois casamentos fracassados e quantas vezes havia deixado de sorrir. Já eram duas da manhã e ele continuava ali. A garrafinha de whisky já havia acabado, os cigarros já estavam no fim e seu coração parecia naquela noite se confundir com o cinza do asfalto.
As pessoas passavam na rua já com aquelas expressões de fim de festa e o observavam quase inerte. A calçada da praia de Copacabana ainda tinha aquele movimento comum de fim de noite, quase dia. Poucos que ali passavam entendiam o peso do mundo dentro dele. As horas se arrastavam assim como seus pensamentos quase distorcidos. Não estava bêbado. Precisava estar quase sóbrio para que a consciência abraçasse o inconsciente.
Quase sozinho viu quando o mar pariu o sol anunciando mais um dia de dúvida e de ponto para assinar na repartição pública. Estava cansado, pensou em voltar para casa, mas o cedo da manhã o fazia sentir que já era tarde. E ele estava ali, quase inerte, sentado à beira da calçada quando fez um movimento quase brusco, quase leve, quase de entrega, quando aquele carro passou.

E. Alvarez

6 comentários:

Unknown disse...

Bonito... breve como a felicidade. Ainda vou escrever sobre certas recorrencias em seus textos. Falo disso depois! HUGS
vilian

Bruno. disse...

"(...) Era orgulhoso até consigo mesmo. Seu rosto quase petrificado denunciava as linhas do tempo e peso que trazia nas costas..."

Não quero me sentir assim quando chegar aos 40, não quero mesmo.

Blue Label? Uau!!!
=)

Miterioso disse...

parabéns pelo texto, parabéns pelo aniversário (mesmo que atrasado). Beijos e muitas saudades

JB disse...

Belíssimo texto. É perceptível a sensibilidade da escritora delineada entre vírgulas e paragrafos. Parabéns. Este texto caiu como uma luva.
Tenha um ótimo dia.

Anônimo disse...

O que posso dizer???? Diante de tão lindo relato...
Acho que consegui ver e sentir toda a super carga de emoção deste texto graças a indescritivel graciosidade q vc tem me transformar imagens em palavras...

Thais Souza disse...

Um texto tão emotivo quanto à musica citada. Parabéns Eveline! Espero um livro seu! Beijos